Assim era o nosso desejo enquanto vivíamos o tempo de isolamento em pleno Covid-19. Tornar-nos-íamos melhores pessoas! Sonhávamos com uma humanidade diferente, para muito melhor. Iriamos começar a viver mais tranquilos, sem stress, sem correrias, com mais paciência, a pensar mais nos que mais precisam, teríamos mais gestos de solidariedade e de partilha, procuraríamos cuidar mais e melhor dos mais fragilizados, daríamos mais importância às relações pessoais e familiares, viveríamos uma vida simples, em paz, equilibrada, sóbria, viveríamos com o essencial. Tornar-nos-íamos pessoas menos consumistas e menos egoístas. Passados quase cinco anos, já conseguimos ter um olhar desprendido sobre cada um de nós e sobre a humanidade.
Os tempos pós-covid vêm mostrar-nos uma humanidade, claro está, com consideráveis exceções, não podemos generalizar, muito centrada em si própria e frequentemente ávida de consumo, de comprar e gastar mais do que aquilo que realmente se precisa. Uma humanidade a viver o carpe diem, quam minimum crédula postero, como nos diz o poeta romano Horácio no seu livro Odes, escrito entre 65 a.C - 08 a.C. A situação de grande instabilidade, nacional e internacional em que vivemos, inconscientemente, leva-nos a viver e a usufruir do momento presente sem pensar muito no que o futuro nos reserva. Consumimo-nos à procura dos equipamentos eletrónicos de última geração, de adquirir e usufruir das melhores viagens e melhores hotéis, adquirir carros e roupas da última tendência, aparentar ser e ter o que não se é, nem, efetivamente, se tem … As grandes marcas sabem-no bem e apresentam-nos os vários produtos com grandes promoções, nas múltiplas e variadas Black Friday, com um marketing tão agressivo e focalizado que levam a criar em nós necessidades desnecessárias e a comprar mesmo sem precisarmos.
Quem de nós, em boa verdade, poderá dizer que só compra o que efetivamente precisa?
Diz-nos o Papa Francisco que a cultura do consumismo condiciona-nos muito porque vivemos num frenesim e numa insatisfação interior constante e permanente à procura do novo, da novidade e facilmente descartarmos o que temos. Ficamos muito limitados e sem tempo para cuidar do essencial e do propósito para qual Deus nos criou.
Paralelamente ao consumo de bens, vivemos fortemente marcados por um consumo desenfreado das redes sociais. Gastamos grande parte do nosso tempo a consumir post´s, vídeos, twites, likes, jogos, etc. As viagens de transporte público, as mesas dos restaurantes, as esplanadas dos cafés, os recreios dos alunos nas escolas, as salas de espera nos hospitais, o interior das nossas casas, são uma fotografia viva e interativa, desta insólita paisagem. Estamos juntos, mas separados por um ecrã. Os nossos telemóveis são uma extensão de nós mesmos. O dedo polegar desliza constantemente, percorrendo à velocidade luz todos os conteúdos que aí surgem. Consumimo-nos à procura de não sabemos muito bem o quê. Comentamos tudo. Às vezes, com algumas palavras ofensivas. Não nos fixamos em nada. Já não conseguimos escutar uma notícia ou uma música completa, ler um texto até ao fim, esperamos que não se aplique a este. O nosso cérebro está impaciente e ávido à procura sempre de mais e mais. Vivemos insatisfeitos. Razão tinha o sociólogo e filósofo polaco Zygmunt Bauman (1925-2017), no seu livro sobre a Modernidade Líquida, ao dizer que, com a chegada das tecnologias, tornamo-nos mais dinâmicos, fluidos, menos sólidos e consistentes, alteramos e mudamos muito facilmente de conteúdos, valores, posições, palavra. Tudo é muito mais volátil. Acrescenta ainda que, com as tecnologias, conectamo-nos facilmente às pessoas, mas de igual modo também nos desconectamos e descartamos rapidamente. O chamado amor líquido. Salvo exceções, as relações pessoais e afetivas, passam a ser consideradas e válidas enquanto são novidade e satisfazem, ao jeito dos bens e produtos que consumimos. Acredito que é possível, mas vivemos um tempo em que é muito difícil manter compromissos para toda a vida, empregos para toda a vida, relacionamentos para toda a vida, amor para a vida toda, como tão bem a Carolina Deslandes nos diz na sua música - A Vida Toda!
Estamos em pleno tempo de Quaresma. O tempo que, generosamente, Deus nos concede para fazermos memória do Amor Maior de Jesus, um amor sólido, coerente, comprometido, delicado por cada um de nós. Jesus que se consumiu de amor por mim, por nós, por toda a humanidade. Por vezes dou por mim a perguntar-me de como estou a viver esta Quaresma. Mais uma para contar no meu currículo de quaresmas já vividas, em que consumo tudo o que habitualmente as quaresmas nos trazem: retiros, via sacras, procissões do Senhor, confissão anual, sermões do encontro de Jesus com Maria sua Mãe, mensagens do Patriarca e do Papa Francisco etc…não é que seja mal, tudo isto é muito bom, mas qual o verdadeiro sentido e propósito que lhe dou?
Consumo-me a cumprir tudo isto ou consumo-me a escutar aquilo que o Senhor, no silêncio e na intimidade do coração, me inspira e suscita a ser?
Fazer jejum de consumos supérfluos, tendo em conta a sustentabilidade da Casa Comum; ter gestos de delicadeza e partilha para com os pobres e sem-abrigo; fazer jejum das redes sociais e estar mais tempo, gratuitamente, em oração com Ele, com a família, com os colegas da escola, do trabalho; jejuar de palavras ofensivas e cultivar uma linguagem delicada com todas as pessoas; partilhar tempo a fazer companhia a pessoas que vivem na solidão; visitar os doentes; rezar pela paz no mundo; amar e respeitar as pessoas que não me parecem tão simpáticas; consumir a vida por causas nobres; fazer voluntariado ou participar na Missão Ut VITAM, direta ou indiretamente. Consumir-me no anúncio alegre, confiante e esperançoso de Jesus Cristo, que deu a Sua Vida por nós; com um olhar positivo e atento para encontrar à minha volta gestos de presença do Senhor Ressuscitado…
Que nesta Quaresma possamos dizer como Eugénio Jorge na sua canção:
Só por Ti Jesus quero-me consumir,
Como vela que arde no altar, consumir de amor!
Desculpem, estava-me a esquecer, hoje celebramos Dia Mundial dos Direitos do Consumidor!
Conceição Pereira, rscm