Bem sei que não existe a dor como uma abstracção unívoca. Existem dores, níveis de dor, histórias de dor e sofrimento. Talvez seja essa a primeira razão do desconforto das nossas conversas: pensar sobre a dor implica a convocação de rostos, pessoas, circunstâncias, histórias que nos perturbam, que voltam a tocar em feridas que julgávamos já saradas. Paradoxalmente, a dor remete-nos para histórias de vida, ao mesmo tempo que contém em si o desejo de vida, vida com sabor, vida com sentido.
A dor enquanto coisa experimentada é fonte de conhecimento. Experimentando e conhecendo dor, passo a saber de uma força que limita a vida. O que faço eu com esse conhecimento? Por um lado, pode servir-me como instrumento penal para aplicar arbitrariamente aos condenados no tribunal do meu achismo. Pode, por outro lado, ser como que uma escola onde aprendo a empatia, onde compreendo com mais clareza o que é sofrer o que tu sofres...
Fará sentido desejar uma vida sem dor?
Imagino que muitas pessoas associem a ideia de felicidade a uma meta, mais do que a um caminho, a um ponto de chegada confundido com a ideia de uma certa ataraxia, uma ausência de perturbações e paixões. No limite desta fantasia, a vida feliz – que nunca poderia ser vivida na complexidade do real onde nos inscrevemos – poderia ser uma vida sem dor. Permitam-me ser rápido: se não fosse a dor muitos de nós não estaríamos vivos – imagine-se! Se não doesse a mão ao tocar na panela com a sopa a ferver, em vez de fracções de segundo, os segundos de contacto bastariam para degradarem irremediavelmente a pele… Se a massa estranha que aparecera num determinado órgão do corpo não doesse, não iríamos a tempo de eliminá-la, e poderia ser ela a eliminar-nos... Num primeiro momento, poderíamos aceitar a evidência de que a dor existe para nos proteger, para activar instintos de defesa e auto-preservação.
Há, porém, outras dores…
Há quem viva uma vida inteira com dor crónica e mesmo com dor permanente. (Quanto tempo seria eu capaz de aguentar viver com dor severa constante?...) E dores interiores: «dói-me tudo, padre. Dói-me a alma!» Insisto numa ideia inicial: a dor reclama desejo de vida com sabor, de vida inteira, de vida com sentido. Se a dor fragmenta, também ela reclama unidade, inteireza. A experiência de fragmentação, própria dos frágeis – ambas as palavras partilham o mesmo étimo –, é fonte de dores e sofrimentos: quando o corpo se degrada, quando as nossas perdas nos roubam a saúde emocional, quando as frustrações se avolumam na suspeita de que «já não sou capaz», quando a violência, o abuso e o medo matam a possibilidade criativa de ser-eu... É, porém, a partir da experiência de fragmentação que os frágeis desejam e conspiram a inteireza. E o caminho que recolhe os pedaços, une os fragmentos, devolve à vida a sua inteireza e a sua verticalidade é o cuidado.
Proponho mesmo que cuidar encontre o seu sinónimo no verbo inteirar.
E são frágeis, fragmentados, que compreendem frágeis, fragmentados. São frágeis que cuidam de frágeis, são frágeis que inteiram frágeis, são frágeis que erguem frágeis. Frágeis, esses que na própria dor e no próprio sofrimento, aprenderam a empatia, aprenderam o que pode ser a dor do outro. E todo esse processo artesanal ganha forma na escuta, na disponibilidade a aprender as palavras com que dizes quem és, na consideração da tua originalidade, na aceitação mútua, na interdependência... Apesar de paradoxal, a dor e o sofrimento que decorrem do que nos fragmenta podem converter-se num primeiro passo de um caminho interior de encontros, de sentidos, de sabores que podem tornar a vida coisa inteira, verdadeiramente original e preciosa, à semelhança das peças recuperadas pela arte japonesa de restauro kintsugi: a peça quebrada e colada a ouro é absolutamente singular nas suas “cicatrizes” e infinitamente mais valiosa do que no seu estado inicial...
António Pedro Monteiro
Padre dehoniano, autor do blog e podcast «Aquele que habita os céus sorri»