Atribuímos múltiplas finalidades aos mais comuns dos objetos, criamos cenários fantásticos e histórias mirabolantes nos mais improváveis dos ambientes, procuramos, arriscamos, perguntamos... tudo configura um estímulo para a nossa curiosidade insaciável de conhecer, de perceber como as coisas funcionam, de experimentar! O mundo é repleto de possibilidades e toda e qualquer ideia que tenhamos é explorada, porque nos é indiferente se é considerada boa ou má, ridícula ou pertinente (não aprendemos, ainda, a arte da auto-crítica severa!).
Quando somos crianças, não há hábitos nem rotinas; há, apenas, o acolher das novidades que um novo dia traz, com um espírito de aventura renovado, porque temos uma confiança inabalável na nossa própria imaginação e criatividade. E, nesta despreocupação pelo que é considerado bom ou mau, nesta auto-confiança e coragem infantis, há uma liberdade inerente a tudo o que fazemos que nos torna profundamente artísticos. E torna as nossas criações profundamente autênticas. Cada uma destas surge como a tentativa inconsciente de nos mostrarmos ao mundo, como realmente somos; de expressarmos a nossa individualidade – sem medos, sem filtros.
Contudo, à medida que vamos crescendo e que vamos sentindo o peso de uma existência consciente, assente em regras essenciais à vida em comunidade, longe do idealismo e fantasia intrínsecos à realidade de uma criança, surge a dificuldade crescente em nos darmos permissão para sermos realmente criativos. E é fácil (e compreensível), à luz das nossas obrigações e responsabilidades diárias, deixarmo-nos levar pelas condições, pelas balizas... sobretudo quando, mediante as experiências que vamos tendo, nos tornamos todos um pouco suspeitos do nosso próprio talento.
A maioria de nós procura oferecer ao mundo algo que seja considerado verdadeiramente de qualidade…
Algo que seja ilustrativo do valor que temos para a sociedade. No entanto, desde cedo, a dicotomia certo/errado, tão profundamente enraizada no nosso sistema de ensino, por exemplo, amortece a nossa criatividade (que pressupõe a existência de múltiplos possíveis caminhos, contrapondo a ideia de uma única resposta possível). E, fundamentando os princípios dogmáticos estabelecidos para a conduta da nossa vida enquanto membros integrantes de uma sociedade “que funciona”, leva-nos a cair na ilusão de que o que temos de fazer tem, de uma perspetiva necessariamente utilitária, de ser bom. Caso contrário, é desvalorizável. E isso condiciona a nossa oportunidade de criação; condiciona as nossas oportunidades de progresso; fomenta a estigmatização, a desigualdade e a injustiça.
A arte, neste sentido, surge como um agente de revolução. Albert Einstein, homem da ciência, dizia que “a imaginação é mais importante que o conhecimento” – é importante sonharmos e partilharmos os nossos sonhos com os demais sonhadores do nosso tempo, no sentido de criarmos um mundo melhor, porque só isso gera mudança. A arte cultiva em nós a capacidade de imaginar o futuro e, com isso, de transcendermos o momento presente. E isto é, inerentemente, encorajador. Em todas as suas formas, a arte configura um veículo para a expressão livre, autêntica e ilimitada de quem a cria. Um artista é impelido a incluir-se na narrativa das suas próprias criações e forçado a confrontar-se consigo mesmo – com as suas crenças e convicções – na procura do significado mais profundo da existência e do mundo. É convidado a colocar o seu talento ao serviço da humanidade, para a criação de algo original e de uma visão renovada do mundo. É capaz de interligar histórias e de criar um espaço acolhedor que une as pessoas na sua diferença, dando voz àqueles que, oprimidos na miséria e no sofrimento, não têm oportunidade para se fazer ouvir. Como tal, a arte tem a capacidade de fazer sentir, de inspirar, de alterar paradigmas... de gerar ação! E tem um poder fundamentalmente transformador, tanto para o indivíduo como para o coletivo.
O Papa Francisco dizia que «uma das coisas que aproxima a arte da fé é o facto de inquietar um pouco. A arte e a fé não podem deixar as coisas como estão: elas mudam-nas, transformam-nas, convertem-nas, movem-nas» (50.º aniversário da inauguração da coleção de Arte Moderna dos museus do Vaticano, 2023). A arte desafia o status quo e tem a capacidade de atuar como catalisador de mudança: desperta consciências para as injustiças – exalta a profunda insatisfação do artista com o modo como o mundo opera, que permite tanto sofrimento e crueldade – e incentiva à transformação pessoal e à procura da beleza de Deus e da humanidade no contexto de uma vivência íntegra e bela.
A arte habilita-nos a contactar com o transcendente
Cada criação artística é um produto da criação divina em si mesmo, uma vez que também Deus tomou parte do que implica ser artista, quando nos criou à Sua imagem e criou o mundo que nos rodeia. Fazer arte e viver no sustento que nos oferece a pintura, a poesia, a literatura, a música, a dança, a escultura... é tomar parte do caminho de Deus. Do sonho de Deus! Por isso, como cristãos e pessoas de fé que procuram sentir e agir para que todos tenham uma vida digna, celebremos, com fervor, a arte! Reconheçamos que, através do encontro com esta, «os limites da experiência e da compreensão ampliam-se» e a riqueza da existência humana é acolhida e exultada; resgatemos a chama criativa que possuíamos enquanto crianças pois a arte, em todas as suas formas, tem o poder de trazer maior harmonia, justiça e unidade ao mundo!
Mafalda Rodrigues
Estudante de Medicina