A partir de um determinado momento – que me apanhou distraído – os futebolistas passaram a poder escolher o seu número. Com mais ou menos superstição, com maior ou menor domínio da matemática, de repente, numa equipa de onze pessoas tivemos uma invasão de números com dois dígitos. Tudo bem. Se as tácticas futebolísticas evoluíram, compreendo que os números clássicos, que designavam posições clássicas, de esquemas clássicos, fossem gradualmente perdendo o seu significado. E, naturalmente, assim se ultrapassou uma rigidez regulamentar. Um brinde ao tempo onde cada um pode escolher o seu número! Pensando nisto, sugiro um número para saborearmos a fidelidade. Na sequência do clássico 1 para o guarda-redes, dos números 7 e 10 que do Figo voaram para o Ronaldo e para o Messi, eis que um número se poderia reservar para a camisola da Dona Fidelidade: o número 8.
Que relação existe entre o número 8, a quaresma – que designa uma quarentena – e a fidelidade?
Na música tonal, o oitavo grau refere-se à tónica, à nota fundamental que designa a tonalidade. A oitava – numa frequência diferente – é a mesma nota, como se o oitavo grau fosse um regresso ao primeiro. Do mesmo modo, no cristianismo das origens, as comunidades reuniam-se ciclicamente «oito dias depois» para fazer memória do gesto pascal de partir o pão em memória de Jesus. Referia-se o oitavo dia como aquele em que os discípulos faziam memória da Páscoa, esse momento inaugural da nova humanidade.
Fidelidade designa a qualidade de quem é fiel, de quem tem como referência o estado original ou as características originais. Não se pode, por isso, afirmar rapidamente que fidelidade seja uma qualidade de quem conserva simplesmente o que recebeu. Antes, diz a inteligência – essa capacidade de ler para lá do óbvio –, a lucidez, o discernimento, a coragem de decidir, distinguindo o essencial do acessório, tendo como referência e finalidade o original. Se quisermos, a fidelidade opõe-se à conservação estática de algo recebido, designando, antes, uma dinâmica de permanente regresso.
Os 40 dias de preparação da Páscoa – que para serem 40 dias exactos temos de excluir cada Domingo do tempo quaresmal, esse Oitavo Dia que é sempre Páscoa e nunca outra coisa – começam com um gesto muito sugestivo: os cristãos recebem cinzas. Começar com cinzas – ironia à parte – já diz o ponto. A cinza é precisamente o símbolo do fim de tudo, o máximo da destruição. Depois das cinzas, resta nada. Começar em pleno “oitavo grau”, “começar no fim” é, na verdade, um convite a voltar ao início, a recomeçar, a regressar à origem. A Páscoa recorda-nos que nada está suficientemente morto na nossa vida que não possa erguer-se; nada está suficientemente perdido que não possa ser reencontrado; nada está definitivamente fragmentado que não possa inteirar-se.
A Páscoa diz o que os nossos olhos não conseguem ver.
Os olhos dizem-nos que a vida é um caminho do nascimento para a morte; a Páscoa diz-nos que a vida é um caminho da morte para um nascimento. É precisamente isto que experimentamos quando perdoamos ou pedimos perdão, quando refazemos relações, quando solucionamos problemas, quando desbloqueamos situações, quando permitimos a possibilidade, quando fazemos do amor – nas palavras de Santo Agostinho – aquela decisão: «quero que tu sejas». E tudo pode recomeçar.
Discípulos de Jesus, todos os nossos regressos são a Jesus, a nossa origem: queremos ser fiéis a Jesus, queremos regressar a Jesus, queremos «vestir a camisola número 8». Esse regresso à origem, esse trânsito, esse «êxodo», não prescinde do Evangelho, lido e relido até se fazer carne. E se é verdade que o contacto com o Evangelho, estudado e aprofundado, nos liga à origem, na verdade, também ele tem o poder de nos tornar originais, dado cada corpo que «põe em prática a palavra» assume uma forma única e singular. Esse caminho de regresso a Jesus assume-se como uma peregrinação. Per ager – através dos campos; pelos campos – diz a ousadia e o risco de não seguir estradas feitas e caminhos calcados. Diz uma escolha original que torna original o próprio percurso e original o peregrino.
«Acredita no Evangelho» ouvíamos ao receber cinzas. Que a Quaresma seja esse tempo de fidelidade, uma oportunidade de regressos, não pelos caminhos conhecidos, mas na ousadia de buscar sempre a origem.
E que o número 8 seja para a camisola da Quaresma. (Sem confusões: o Mustang vai continuar entre o 7, o 10 e o 17).
António Pedro Monteiro, padre dehoniano.
Autor do blog e podcast: Aquele que habita os céus sorri.