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RECONHECÊ-LO

Na dinâmica de Exercícios Espirituais, Santo Inácio de Loyola desafia-nos a ver Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus.

O nosso olhar, marcado pela finitude, raramente tem capacidade plena de ver Deus em todas as pessoas e em todas as coisas ver Deus. Precisamos de um olhar e um coração extremamente alinhados e sintonizados com Deus; de uma relação pessoal constante com Ele e de momentos específicos, momentos marcados pela transcendência que nos transportem para um outro nível, para lá da nossa finitude, nos projetem para a “nuvem que nos envolve” onde Deus se manifesta e caminha, humildemente, connosco. Não para a nuvem | cloud onde somos tentados a viver virtualmente, pois uma boa parte da nossa vida já lá se encontra, mas para a verdadeira Nuvem | Cloud Divina. Precisamos de subir à montanha, experienciar o silêncio e aprimorar a escuta atenta do nosso coração. Várias personagens bíblicas fizeram esta experiência de subir à montanha.

A montanha, na bíblia, aparece como lugar de encontro e de intimidade com Deus.

Lugar onde Deus se revela e onde nós descobrimos a nossa verdadeira identidade, nos configuramos e transfiguramos, onde Deus nos aponta qual o caminho a seguir. Momentos tão intensos que muitas vezes ficamos caladas e calados, porque não os sabemos dizer.

Assim aconteceu com Pedro, Tiago e João, companheiros de Jesus. No seu dia a dia, no limite do seu olhar, não O conseguiam reconhecer na Sua divindade. Jesus leva-os consigo e sobe ao monte para rezar. Foi preciso criar as condições necessárias: sair do quotidiano, escalar passo a passo a alta montanha, silenciar os barulhos. Jesus ora ao Seu Pai, entra em diálogo com Moisés e Elias, falam sobre a dureza da Sua paixão e a finitude do olhar e coração dos três discípulos impede-os de ver o que acontece de seguida. Os seus corpos cansados de subir a montanha dão sinal de si, desligam do assunto, e os seus olhos são habitados pelo sono. Ficam sonolentos! A mesma cena repete-se no Monte das Oliveiras, pós jantar, enquanto Jesus dialogava, com Deus, seu Pai, sobre a chegada da sua Hora. Assim é a nossa humanidade.

Assim acontece, tantas vezes, a cada uma, a cada um de nós, na oração no nosso dia a dia. O nosso corpo relaxa, estamos cansados, ficamos sonolentos. Temos dificuldade de permanecer ativos, de permanecer vigilantes, de entrar em oração, de O reconhecer e de O escutar. Quando vencemos o sono e despertamos, ao jeito dos três discípulos, Deus manifesta-se e concede-nos a graça de O reconhecer.

Habita-me sempre uma questão: terá sido Jesus a se transfigurar ou terão sido metamorfoseados os olhos e os corações de Pedro, Tiago e João, enquanto dormitavam, para ficarem aptos para O poderem reconhecer na Sua divindade?

João Damasceno, um monge sírio, padre da Igreja, que viveu no século VII, defendia que Jesus permaneceu o mesmo e que foram os olhos dos três discípulos que sofreram uma transfiguração para reconhecerem no quotidiano, o que não viam em Jesus.

Há muitas interpretações sobre esta passagem bíblica, todas elas belas; no entanto, gosto de imaginar e contemplar esta cena bíblica como escolhida por Jesus para subir a montanha e lá estar - meia a dormir ou meia acordada, isso não interessa muito - onde Deus me revela o seu Filho Jesus e me concede a graça da purificação do meu olhar e do meu coração, para O reconhecer na sua divindade e nas irmãs e irmãos às quais sou enviada na missão geradora de vida para todos.

Estamos a entrar na segunda semana do Tempo da Quaresma e este tempo desafia-nos a entrar no espaço sagrado do nosso coração, na intimidade com Deus, no estado de “des sonolência” do nosso olhar para vermos e escutarmos Deus a dizer: Escutai-O! 

Escutar o que Jesus tem a dizer a cada um de nós, hoje, aqui e agora, na nossa realidade concreta.

Escutar a voz de Jesus que nos pede que O sigamos e, num mundo tão tecnológico e virtual, tão inseguro e incerto, tão desregulamentado e fragmentado, tão veloz e excessivo, tão narcisista e egocêntrico, façamos a nossa opção pela Justiça, pela Paz, pela Esperança que não engana, pela Verdade, pela franqueza de palavra, pela fraternidade e simplicidade de coração.

É também o tempo para sintonizar os nossos ouvidos para escutar a Voz de Deus que nos sussurra:  Tu és minha filha muito amada! Tu és meu filho muito amado!

Esta voz que desperta as nossas “entranhas”, que nos dignifica, que nos liberta das nossas amarras desordenadas, que nos torna únicas e únicos, nos reconhece e filia na nossa verdadeira identidade de filhas e filhos muito amadas e amados por Deus.

Esta voz que, na brisa suave e no silêncio, nos arrebata dos nossos ambientes quotidianos, nos faz ver o belo e o diferente em toda a Sua criação, e abre os nossos olhos para ver o futuro que Ele vê.

Esta voz que amplia o nosso coração e nos leva a cultivar um olhar terno e compassivo. 

Tudo poderá começar no “cimo da montanha”, mas não podemos continuar aí.

Não podemos ficar nas três tendas, ficar acomodadas e acomodados no “quentinho espiritual”, pois é preciso “descer” e reconhece-Lo nas pessoas que vivem connosco, com quem nos encontramos diariamente, que nos são próximas, com quem mantemos relações fraternas de afeto e amizade, e reconhecê-Lo também nas pessoas com que temos mais dificuldade de relação, que discordam de nós e que não simpatizamos tanto ou simpatizamos muito pouco.

Esta voz que nos desafia e eleva para um outro patamar: o de nos oferecermos a Jesus para com Ele colaborar. Como dizia Etty Hillesum, dirigindo-se a Jesus, pouco antes de morrer no campo de concentração de Auschwitz, em novembro de 1943: Tu já não nos podes ajudar, mas somos nós que Te devemos ajudar, e desse modo ajudamo-nos a nós mesmos. A única coisa que podemos salvar nestes tempos, e também, a única que realmente importa, é um pedaço de Ti em nós mesmos. E talvez também possamos contribuir para desenterrar-Te dos corações de outros homens e mulheres. Cabe a cada um de nós ajudar-Te a defender a Tua casa em nós.

Usando os termos bélicos, dos tempos de guerras geopolíticas e territoriais, económicas e comerciais que, infelizmente, estamos a viver, armemo-nos com os “drones espirituais” que a Igreja dispõe, permaneçamos vigilantes para defender a casa de Jesus em nós.

Reconheçamo-Lo! Escutemo-Lo e caminhemos, caminhemos juntos, caminhemos com Esperança, como nos aconselha o Papa Francisco, na sua mensagem para esta Quaresma.

Conceição Pereira
Religiosa do Sagrado Coração de Maria