Abrem-se os espaços calmos
abrem-se clareiras para estar indefinidamente num repouso fresco.
Que inexplicável confiança
removeu os últimos obstáculos!
As orientações são outras e são todas para o Único.
Abertura como uma avalancha de tranquilidade.
A altitude enche o peito de uma leveza vasta.
Um sabor de lucidez aérea tomou conta de mim.
Já nada me falta vibro à beira do incompreendido.
O que procurei explode em evidências que me inundam.
Nada mais sou do que uma vibração unânime.
O ignorado habita o elementar sem impaciência.
Algo se completa a cada momento algo principia.
Ideias como brisas inteligência do horizonte.
Um soterrado corpo despertou e dilata-se luminoso.
Sem palavras respiro o gérmen que dá magnanimamente.
Sublime e simples é o lugar onde a luz domina.
Que presenças nas imagens que estremecem na brancura!
Modelado pelo imponderável o alento purifica-se
E une-se à inalterável continuidade do ser.
Longínquas reminiscências cristalizam no ar
e são gestos do ar e de um prodígio suave.
Como que do fundo da pedra me liberto e sou o espaço
que diz na vasta luz o sim do universo.
António Ramos Rosa
A poesia é a linguagem do futuro e, no reino da linguagem, a mais próxima do inefável.
António Ramos Rosa foi um poeta desassossegado, aberto ao inominável, inquiridor pela fonte das fontes. Penso que não terá sido alguém a quem chamaríamos “crente”, mas fazia parte dessa nuvem de testemunhas que ardiam pela beleza, ele que escreveu: “Nunca podemos dizer que chegamos à altitude divina/ porque estamos sempre chegando sem chegar”.
Neste poema, conseguimos descortinar um movimento ascendente, da morte para a vida, do obstáculo para a clareira, da palavra para o silêncio, do fundo da pedra para a altitude leve. Todo o poema é movimento, libertação, tensão para o infinito e para o alto. Que poderosa metáfora para o renascimento, que o nosso coração e as nossas entranhas anseia!
Em algum momento das nossas vidas, ou em vários momentos, fomos parando ou desistindo.
Seja pela dor infligida, pela perda de esperança, por uma rutura afetiva ou, simplesmente, pelo cansaço. Em algum momento das nossas vidas, fomos cristalizando, abrandando o ritmo, baixando os olhos, calando. Talvez conheçamos também alguém assim, alguém que “no entardecer da vida” se encontra desvitalizado, descoroçoado.
E, no entanto, da mesma forma que um famoso ator sossegou a sua amada dizendo “Teremos sempre Paris”, também nós podemos dizer: “Eis que vem, de novo, a Primavera”. Já a sentimos: nos dias a ficarem maiores, nas flores, nos odores. É o tempo da alegria e das canções, o tempo de todos os recomeços. É sábia a natureza: traz em si a certeza dos ciclos de vida e morte (é certo), mas sempre e sempre nos convida à alegria dos recomeços. Recomeçar ou renascer: “Será que ainda posso ser o que nunca fui/ e que julguei que nunca poderia ser?” pergunta ainda o poeta. É a grande pergunta das nossas vidas. A natureza dá a sua resposta, mas o Ressuscitado dá-nos a grande resposta, e por ela deu a sua vida.
A Páscoa aí está.
Não celebramos o acontecimento passado, mas mergulhamos nela como o acontecimento a partir do qual todo o possível acontece: o nosso olhar sobre a História, a abertura a uma esperança firme como rocha, o trânsito do homem velho para o homem novo, como diz S. Paulo, e que é como quem diz: a passagem de uma vida morta para a plenitude da alegria, do amor e da liberdade.
É pena que não abundem testemunhas vivas que vivem já neste mundo o espanto da sua transfiguração no dador de toda a vida, o Cristo Jesus.
Mais que tiktokers e influencers devíamos alçar os olhos para os santos: os nossos inspiradores e a firme garantia de que também o nosso corpo soterrado pode ser “o espaço que diz na vasta luz o sim do universo”. Assim foi com um padre, no sul de França, numa cidade cheia de soterrados a quem uma mão de amor resgatou para a luz e para o Único.
Pedro Martins
Professor