Menu Fechar

VERDADEIRAMENTE HUMANO

Pensar é muitas vezes associado a um ato de julgar, de estabelecer relações lógicas, a uma capacidade de resolver desafios abstratos.

Pensar é como se dentro de nós existisse uma espécie de computador altamente desenvolvido que nos leva à descoberta de novas complexidades e a um progresso tecnológico cada vez maior. Mas será que pensar se esgota nesta capacidade de tornar o mundo mais inteligível? 

No dia a dia, sempre que o nosso mundo se torna desordenado, dizemos para nós mesmos que precisamos de “parar para pensar”. Paremos então um pouco para refletir sobre o  significado desta expressão.  

Há uma dimensão autorreflexiva que associamos à ideia de “parar para pensar”, por oposição aos afazeres diários, definidos por rotinas ou necessidades, que quase reduzem as ações a simples reflexos automáticos. Esta expressão traz consigo uma atmosfera de esperança libertadora num encontro com nós mesmos, que resulta de um movimento contrário à imagem do pensamento, como uma sucessão de relações, um movimento em direção ao interior, uma oportunidade para uma “tomada de consciência”, como se costuma dizer. Este movimento, por si só, não imprime qualquer ação no mundo. Mas se de um raciocínio lógico, rigorosamente elaborado, podem advir decisões que se traduzem em acontecimentos na realidade concreta, apenas uma “tomada de consciência” se pode tornar uma condição para que uma verdadeira transformação ocorra.

Por outro lado, atualmente, qualquer reflexão sobre o pensamento humano não pode ignorar o desenvolvimento exponencial de diversas formas de inteligência artificial. Há obviamente capacidades que o ser humano jamais poderá igualar a uma máquina, tal como a quantidade de informação processada num curto espaço de tempo. Mas será que não há algo no pensamento humano que estará para sempre vedado a qualquer construção artificial? 

Por mais desenvolvidas que sejam as potencialidades da inteligência artificial, a capacidade de se voltar para dentro de si parece continuar limitada à esfera humana.

Não me parece que o pensamento humano se esgote em princípios e em relações lógicas, por maior que seja a complexidade alcançada por meio de criações artificiais. A disponibilidade para “parar para pensar”, como uma espécie de permissão para um encontro com o vazio que nos espelha, que nos faça olhar para as mesmas realidades de múltiplas formas e, sobretudo, de formas nunca olhadas, devolve à consciência humana um lugar insubstituível. Este é um processo orgânico do qual faz parte a ordem lógica, mas também um certo caos desordenado.  

Apesar dos avanços científicos, em particular no campo das neurociências, a mente humana e, em particular a consciência, continua a ser um mistério. A capacidade de questionar, de criar novas possibilidades ou simplesmente de ficar quieto, de escutar o que se passa dentro e fora de nós tem contornos que parecem escapar à lógica científica. Mas é precisamente esta dimensão do pensar que o torna tão único, porque faz com que qualquer ato humano adquira um significado mais profundo. O ato de ver, por exemplo, não se esgota apenas na captação e interpretação de estímulos, como um processo mecânico, mas implica tomar consciência do que está a ser visto, trazendo sempre a possibilidade de descobrir novos significados em cada coisa que é olhada. É desta forma que podemos descobrir a beleza à nossa volta, aquela beleza que não está dependente do vício insaciável da novidade, mas apenas de um olhar consciente que reforça a relação connosco e com o mundo à nossa volta. Aquela beleza expressa por Saramago, quando nos transmite as palavras da sua avó, “o mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer”.

Uma máquina provavelmente nunca terá pena, nem medo de morrer. E esta consciência da finitude leva o ser humano a projetar a sua própria vida. E se o pensamento lógico é uma ferramenta essencial na construção deste projeto, é a consciência de si que permite a cada um saber se está a viver com a sensação de estar a cumprir a sua missão, se vive abraçado à sua própria finitude ou se continua numa corrida apressada para lado nenhum. Não há pensamento lógico que nos possa dar sinais sobre a forma como estamos a viver, mas sabemos no nosso interior se nos sentimos ou não realizados. 

E em relação às emoções? Que papel teria o pensamento na vida humana, se não fosse afetado pelas emoções?

Pensemos na forma como a oposição razão-emoção continua a afetar a noção que temos do pensamento. Nas últimas décadas, apesar da esfera emocional ter conquistado um lugar de maior destaque na compreensão da natureza humana, ainda continuamos a associar o pensamento a uma parte ordenada e, de certa forma, superior da mente, em contraste com a desregulação das emoções. Não obstante, atualmente são vistas como elementos orientadores nos processos decisórios, sem as quais ficaríamos para sempre aprisionados numa espiral de raciocínios que não fazem mais do que indicar as consequências possíveis de cada opção, sem que soubéssemos qual o melhor caminho a seguir, porque, em última análise, isso só poderá ser descoberto no mundo interno de cada um, acedido por um movimento da consciência.   

Pensar sobre o pensar ficaria incompleto se não incluíssemos, pelo menos, um breve apontamento sobre o tão aclamado pensamento crítico.

Este também está dependente de um movimento da consciência, neste caso, em direção às suas próprias crenças. Pensar criticamente não é apenas identificar erros de raciocínio lógico ou criar soluções alternativas, mas é essencialmente uma “tomada de consciência” de que a verdade em que cada um acredita corresponde, em primeiro lugar, a uma perceção do que poderá ser a verdade. Assim, e sem cair em relativismos extremos, só nos resta a opção de nos tornarmos mais tolerantes com os que defendem visões contrárias às que a nossa perceção nos apresenta como óbvias. É claro que essa consciência aumenta, não quando a lógica é utilizada como uma ferramenta que conduz a uma vitória sobre o “adversário”, mas com o diálogo efetivo com o outro, quando estamos disponíveis para perscrutar as suas próprias formas de perceção da realidade. Só assim poderá haver um verdadeiro sentido de partilha e de visão comunitária do mundo.  

Se aceitarmos que este movimento interno da consciência é o que torna o ato de pensar um ato verdadeiramente humano, podemos dizer que pensar é substancialmente uma forma de “escutar com o coração”. 

Sandra Pereira
Professora