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ADUBAR A HUMANIDADE

As palavras têm uma espécie de sentido visceral. Não sabemos porquê, mas podemos sentir cada palavra muito para além do seu significado.

A esse sentimento não são alheias outras variantes como: quem diz, como diz, em que contexto diz! Mas em qualquer dos casos, as palavras têm um ADN próprio que nos faz senti-las de uma determinada maneira. 

Detenhamo-nos na palavra ocupar. Não sei porquê, mas sabe-me a uma palavra negativa. Vêm-me à memoria expressões como: está a ocupar o meu tempo, isso só está aqui a ocupar espaço! Só o saber contraria esta lógica “negativa” e ainda assim, não tanto. Do saber dizemos que não ocupa lugar! Lá está: saber é bom, ocupar é mau.

Fiquemos com as palavras saber e ocupar.

Saber está, invariavelmente, associado a inteligência, a capacidades cognitivas e de resolução, a conhecimento. Mas a sabedoria não acontece numa teoria, numa equação, numa formulação. A sabedoria testa-se, experimenta-se e prova-se na realidade. Se há um lugar para a sabedoria, esse lugar é a realidade!  

Um grupo liderado pelo psicólogo Howard Gardner elaborou, na década de 1980, um estudo que veio a ficar conhecido como a Teoria das Inteligências Múltiplas, segundo a qual a inteligência humana não se resume, meramente, a capacidades no domínio lógico-matemático ou linguístico, por exemplo. 

Nestes dias que são os nossos é quase impossível falar de sabedoria sem falar de inteligência artificial, mas como nos disse o Papa Francisco na sua mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais em 2024, façamo-lo sem “leituras catastróficas” ou “efeitos paralisadores”. Façamo-lo a partir da sabedoria do coração. Ela “é a virtude que nos permite combinar o todo com as partes, as decisões com as suas consequências, as grandezas com as fragilidades, o passado com o futuro, o eu com o nós."

No Evangelho deste III Domingo de Quaresma há uma pergunta a que vale a pena prestar atenção: “Porque há de estar ela a ocupar inutilmente a terra?”

A pergunta é feita por um certo dono da vinha ao seu vinhateiro, devido a uma figueira que não dava frutos. Há uma sabedoria de coração na resposta do vinhateiro: “Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo. Talvez venha a dar frutos. Se não der, mandá-la-ás cortar no próximo ano.”  

A preocupação com a ocupação do solo por uma árvore que não dá fruto, remete-nos para um sentido muito prático, utilitário, funcional das “coisas”. Infelizmente, não raras vezes, aplicamos esta mesma lógica às pessoas, às relações, aos laços pessoais e profissionais. Não queremos nada a ocupar “espaço”. Vivemos na expetativa de o ter livre para a novidade que possa aparecer, para o último grito, a última geração, a mais recente sensação, tantas vezes epidérmica.   

Saber, da raiz latina sapere, associa-se a sabor e saborear requer tempo... para que não nos saiba a insípido. Saborear requer deixar ocupar espaço, ocuparmo-nos confiantes e esperançosos! Quando assim é, há como que uma conversão interior que nos leva à sabedoria do coração.   

Quero crer que o vinhateiro não tinha um coração apressado! Quero crer que tinha um coração sábio porque convertido! Tal como a sabedoria, a conversão não acontece, também ela, fora da realidade. Se é verdadeira, acontece na vida, encarna-se, torna-se visceral. Torna-se sinal!

E não, as árvores não são todas iguais, como não têm um só tipo de “inteligência”, não dão todas a mesma quantidade de fruto, nem na mesma altura! E sim, precisamos de ocupar tempo à sua volta, adubá-las, regar e confiar.

Nesta Quaresma, como na vida, não cortemos as pessoas!

Ocupemo-nos delas, cultivemos o seu crescimento, olhemo-las de coração convertido! Só assim lhe conseguiremos ver o valor sem olharmos, apenas, ao solo que podemos querer ocupar com outra árvore ou com coisa nenhuma.   

É isto, não é? Faz sentido, não faz?  

Precisamos de adubar a nossa humanidade. As leituras catastróficas e tantas vezes paralisadoras falam-nos da inteligência artificial como um perigo, um abismo que justificam pelo facto de ela não se revestir de “traços de humanidade”. Pois bem, provemos então essa humanidade, cresçamos nela, demos um valente salto para conseguirmos estar à altura da sociedade multirreligiosa, multicultural, multiétnica, pluralista que temos, dos problemas que enfrentamos.   

Precisamos de fazer o nosso coração dar uma volta, de o metamorfosear, de o converter!  

Luís Pedro de Sousa
Professor